Sempre me achei diferente de todos. Não, eu não me sentia mais especial que o resto da humanidade. Me sinto diferente porque sempre senti diferente. Falo de intensidade e sensibilidade. Sofri um muito, aprendi em dobro. Descobri que a gente nunca deve insistir em quem só aprendeu a subtrair.

segunda-feira, 19 de julho de 2010




Depois de uma noite em claro, um café com adoçante e 4 cigarros, ela havia escolhido o que dizer. Ele já estava 12 minutos atrasado. Que boa ideia, ela pensou. Olhou o relógio, abriu a bolsa, fechou a bolsa, abriu a bolsa. Pegou seu maço de cigarros, puxou um, apoiou-o no cinzeiro, já meio cheio sob a mesa. Apoiou a testa nas mãos. Absurdo, ela pensou. A-B-S-U-R-D-O. Como ela havia marcado aquele encontro? Se ela soubesse que 12 anos e 3 drinks fariam isso com ela, ontem ela teria escolhido não sair de casa. Calma, Tereza, calma. Se ele não aparecer você simplesmente pede um vinho e o couvert e posa de solteirona com dignidade. Claro, porque tomar um vinho sozinha, aliás, acompanhada por torradinhas sem graça e patê de ervas finas, é o maior exemplo de dignidade. Toca o celular. Abre a bolsa, revira tudo, merda de bolsa enorme, cadê? CADÊ? “Alô?!” Ótimo. Atenda o telefone com voz de desespero sim, quem sabe ele ainda não tenha desistido desse encontro estúpido. “Oi. Tá, tá tudo ótimo. Ah, tudo bem. Não, não, não tem problema. Cheguei tem uns 5 minutinhos só. Não se preocupa. Tudo bem. Um beijo.” Tá tudo ótimo. TÁ TUDO ÓTIMO? Não, não tá nada ótimo. A cada minuto que passa, a sensação de abandono se multiplica. Acende o cigarro, pede outro café. Pelo menos ele justificou o atraso. Trânsito, sabe como é? Cinco da tarde é sempre muito complicado. Ela sabia. Cinco da tarde dos últimos muitos anos tinham sido terrivelmente complicadas. E as quatro da tarde também, e as tres e a qualquer hora do dia em que ela se olhava no espelho e só o que podia ver era a Tereza ficando velha, com os dentes amarelados e o cabelo crespo. Ontem não. Ontem, depois de muito tempo, ela se olhou no espelho da boate e viu finalmente uma mulher madura, amadurecida, pelo tempo, pelas mágoas. Ontem, depois de muito tempo ela o havia reencontrado. Barba por fazer, assim, que passa pelo pescoço e arrepia. Aquele grisalho sexy e o perfume, sempre o mesmo. O que por dias contaminou seus travesseiros e lençóis e sua pele. Ainda se olhando no espelho da boate, sorriu. E ainda que seus dentes estivessem sim meio amarelados, seu sorriso não estava. Apagou o cigarro. Pegou na bolsa seu blush e começou a arrumar os cabelos no pequeno espelho. Como que por mágica, o viu no reflexo. Blusa social, que bom. Não coloquei esse scarpin terrivelmente apertado a toa. “Oi“. Beijinho pra lá, beijinho pra cá. Ele se sentou no banco do bar e, antes mesmo de olhá-la nos olhos, olhou o cinzeiro. “Não vai largar esse mau hábito nunca?” E riu. Riu aquele sorriso dele. Aquele sorriso que deixava alguma coisa dentro dela muito quente. “Pois é, tô diminuindo“. Que bela maneira de se começar, com uma mentira descarada. “E então, quer beber alguma coisa, um vinho talvez?“. “Pode ser, mas por favor, doce não, me dá dor de cabeça.“. Ele riu de novo, mas dessa vez um sorriso malicioso, cheio de más intenções. “Mas então, Alberto, frente a frente de novo…“. “É Beto. E sim, parece que a vida planejou nos esbarrar por aí“. Sorriso. Sorriso maldito, desconcertante. Era ali, era agora. Golada no vinho. “Sabe Beto, sei que o nosso tempo passou. Sei que você casou com a Virgínia e não comigo. Sei também que você se mudou pra Londres por conta da separação. Mas Beto, não posso esperar mais 12 anos pra dizer. Alberto, Beto…” O tempo parou. Naquele momento cada pessoa do restaurante parou. Até a chuva que caía sem parar, parou. “… Beto eu simplesmente desejei que a vida me esbarrasse com você nos últimos 12 anos. Cada dia desses 12 anos, cada hora. E justo ontem, Beto, justo ontem que eu não desejei, que eu nem sequer pensei em você, você me aparece…“. Ele levantou os olhos do copo. Olhou pra ela, piscou uma, duas, tres vezes. Abriu a boca, fechou. Sorriu. “Eu realmente não sei o que dizer, Tê…“. “Viu Beto, esse sempre foi nosso problema, desde que éramos só, você sabe, um projeto de casal. A gente sempre deixava pra dizer as coisas quando já não tinha mais tempo.“. “Tê, você sabe. Você sempre soube tudo o que eu queria dizer pra você. Sempre.” Acendeu mais um cigarro, tragou com força. “Tudo o que, Beto? O que? Tudo que eu sei era que a gente era tudo que eu sempre quis. Tudo que eu sei é que você me largou, Beto. Tu me largou e sabe disso.”. “Eu fui um fraco, Tê.” Ele segurava o copo e o vinho tremia dentro dele. “Foi. Você foi um merda. Você me deixou esperando por mais de 10 anos Beto, e porque?“. “Nunca pensei que você me amasse tanto assim…“. Olhou pra ele, olhou pra dentro dele. Sentiu uma lágrima escorrer do seu olho esquerdo e sabia que naquele momento, naquele exato momento a montanha de amor que ela sentia, havia virado avalanche, e ela tava soterrada. “Você quer saber de uma coisa, Alberto, BETO?“. Ele fitava seu rosto com uma mistura de amargura e curiosidade. Ela abriu a bolsa, revirou, foi colocando tudo numa pequena pilha sob a mesa. Chaves, blush, celular, carteira, hidratante, óculos. E depois de uns dois minutos ela tirou um papel amarelado do tempo. Um papelzinho, aquele papelzinho, que dava sentido a tudo que ela queria dizer, mas a raiva não deixou. Ela entregou o papel pra ele. “O que é que diz aí Beto?“. Ele desdobrou o papel.

“Rio, 14 de março de 1997.

Se hoje o sol sair, eu te prometo o céu.

Tê”

Olhou pra ela. “Tereza, Tê…“. “Eu sei Beto. Eu compreendo que você não tenha o que dizer. Você nunca tem.” Ele respirou fundo, colcou a mão em cima da dela e apertou. “Eu sempre amei você Tê. Eu casei com a Virgínia por puro impulso, por estupidez. A gente vivia brigando, você tem que entender…“. Ela tirou a mão. “Eu não tenho que entender nada não. E nem você tem que explicar. Você fez suas escolhas e eu, me agarrei em todo amor que eu tenho, em todo amor que eu tinha pra continuar vivendo. O que eu precisava fazer eu fiz, Beto. Eu toquei minha vida, eu capenguei e eu guardei durante anos o maior amor do mundo. Guardei durante anos isso que eu tô colocando pra fora hoje. Coloquei. E tudo que você tem pra me dizer é que não sabia que eu te amava tanto. Sabe Beto, foda-se. Se você não foi capaz de enxergar o amor astronômico que eu tive por você, talvez seja porque você nunca o mereceu.” Enxugou as lágrimas, terminou o copo de vinho e acendeu mais um cigarro. Beto estava prostrado, parecia uma samambaia e seu sorriso já não tinha mais aquela luz. A dor que Tereza carregou durante anos se dissolveu no ar. Ele quebrou o silêncio. “E agora Tê? O que que a gente faz?“. “Tem uma caneta aí Beto?”. “O que??”. “Uma caneta, você tem uma caneta?“. Ele mexeu no bolso da camisa e tirou uma pomposa caneta dourada onde estava gravado Dr. Alberto Fernadez. Entregou a ela. Ela pegou o guardanapo molhado e manchado de maquiagem. Escreveu, dobrou e entregou pra ele junto com a caneta. Sorriu, um sorriso doído mas aliviado. Descalçou os scarpins, disse pro garçon que o rapaz ali pagaria a conta e saiu pela porta do restaurante, sumindo entre a multidão de guarda-chuvas. Ele desdobrou o papel, ainda em transe com aquela sequencia de acontecimentos. E leu:

“Rio, 27 de setembro de 2009.

Amor não resiste a tudo, não.
Amor é jardim. Amor enche de erva daninha.

Tereza.” [CAIO FERNANDO ABREU]

Um comentário:

  1. Pelo amor de Deus, esse texto é MEU, não é do CFA. Apenas os bilhetes são de autoria dele e POR ISSO ESTAO ENTRE ASPAS.
    Antes de copiar se INFORME.

    http://papelamassado.wordpress.com/2009/10/19/se-hoje-o-sol-sair-eu-te-prometo-o-ceu/

    ResponderExcluir